sexta-feira, maio 26, 2006

montagem

primeiro imagino que sou louco -

então vejo o bloco branco em um canto qualquer da sala. não bem no canto. o bloco está entre o canto e o meio. no meio, nada: do chão ao teto. o chão é um quadrado cheio de quadradinhos.
estou aqui, bem próximo do meio e de frente para o bloco. e tem a sala cheia de luz morta.
é assim: não existem portas. as paredes são espelhos de modo que, se lançar meu olhar para qualquer lado, vejo o infinito.
tenho medo de me mover. gosto de imaginar que atrás do espelho, eles me observam. gostava, porque antes eu fazia muitas coisas para agradá-los. eles me assistiam.
teve um dia. nesse dia eu percebi a sutil diferença no ambiente. tudo tinha mudado. agora eles me vigiavam. comecei a reduzir meus gestos e em pouco tempo adotei essa forma-objeto. me desliguei do cubo branco. agoro não olho mais para as paredes-espelho e parei de dormir.
é devagar que estou percebendo minha paranóia.

terça-feira, maio 16, 2006

o pé.

é só uma torção no pé. tá tudo roxo há uma semana. se dói? dói pra cacete.
tenho febre quase toda noite. já vomitei de dor, sem exagero. primeiro vem uma dorzinha de leve na planta do pé. ela vai aumentando, aumentando... aí vem a febre e você delira. sente frio, calor, acha que alguma coisa extraordinária está acontecendo. delirei um beijo, uma prisão, uma bomba. às vezes, ao final do delírio, pode-se cair na real. o beijo nunca mais acontecerá, a prisão é só o começo de um caminhar medido por anos, e não por segundos, a bomba é o inevitável.
aí se descobre que a dor não se supera. pode-se evitar ou ignorar.
dores tem gradação relativa. uma dor de cabeça pode ter gradação baixa ou alta, dependendo da intensidade, mas dificilmente vai ser menos agoniante do que um pé. uma dor de estômago é um momento de preocupação que normalmente traz outras dores.
aí tem as piores dores: o câncer, a decomposição, a queimadura e a ausência.

quarta-feira, maio 03, 2006

seca quietude

descobri que fui sepultada. alguém me cobriu com terra ainda viva[ talvez durante o sono ], em colher pequena e azul.
sei da colher porque é fácil saberem que não suporto a agonia da ampulheta. sei que é azul porque é da minha natureza estar cercada de ironias.
por fim, sei que faço parte de um sepultamento por causa do silêncio excessivo, beirando um disfarce: até os pássaros parecem silenciosos e os carros furtam-se de histerias.
é um silêncio seco de angústia, como uma briga que não acontece, mas que se acumula no infinito.

transcendo. atravesso as paredes sem sumir, sem me esconder. se silêncio, aquieto grilos no afundamento do asfalto, interrompo gritos com punho cerrado, apareço verde na bunda dos vagalumes.
se barulho, eu mesma faço aos saltos de blocos de concreto no meio de museus e bibliotecas, hospitais e missas, cataclismas e velórios que não são os meus.
se sepulcro, pulo pesada no sonho de quem me enterrou e o enterro na banheira de um quarto de hotel. antes mesmo de ele comer as almôndegas.

segunda-feira, maio 01, 2006

domingo

eu não sei. começou cedo dessa vez. logo que eu acordei.
estava ainda no café da manhã quando uma palpitação mais forte começou no peito. vontade de chorar, vontade de morrer, vontade de dormir até a segunda chegar.
era domingo e eu sabia: a angústia não passaria nem mesmo se alguém acenasse com a possibilidade de me amar. e acenaram. fui para a cama. abracei forte meu travesseiro, imaginei as mãos que eu aprendi a desenhar no ar. amei sozinha a tarde toda. amei com a palpitação, a respiração pesada, o medo, a morte. amei o gozo azul-perdão que veio depois, rodeado de mágoa, de angústia e tristeza.