terça-feira, maio 31, 2005

Contos cotidianos

de um contador das terras distantes

existem duas histórias que eu poderia contar: uma é sobre um homem que amou uma menina por muito tempo e eles tiveram que se separar para se descobrirem feitos um para o outro; e tem a história de um bobo.
sim, eu já imaginava que o bobo seria a história escolhida por vocês, e ela começa assim: "mas o bobo que eu conheço não tem nariz vermelho, nem guizos em sua roupa, tampouco nos faz rir. o bobo anda na cidade, olhos arregalados, curioso.
se querem mesmo saber, ele não procura nada. aprendeu há alguns anos que procurar algo específico sempre torna tudo mais difícil e frustrante. o bobo observa. ele se inclina nas janelas dos prédios, espia as portas abertas dos bares, das casas... ele se fascina com a parede descascada das construções antigas, com cada pedra com que esbarra, com cada sorriso que se abre. o bobo caminha na chuva e, às vezes encontra alguém que o percebe. a cidade é grande demais, rápida demais para que alguém o repare e mesmo assim isso acontece.
ele tem os pés descalços e já aprendeu a fechar os olhos para se guiar pelas deformidades contíguas da terra, do asfalto, das lajotas e pedras. ele tem baixa estatura e usa camisa xadrez. ele ouve por horas a fio o cego tocar acordeom na ruazinha histórica de uma terra reprimida. ele escuta os gritos e os apitos e os ditos e desditos de uma população maldita demais, sofrida demais, esquecida demais. a tudo o bobo olha, a tudo se interessa. nada passa desapercebido pelos sentidos do bobo-xadrez.
às vezes, nos momentos em que ele está mais sensível, o bobo dança uma dança gostosa em linha reta na ponta dos pés. tem dias em que ele sorri pra todo mundo (o sorriso do bobo é deleite porque bobo sorrindo é poesia) com ar de graça. Foi nesse dia que eu o vi e aí fui eu quem passou a o observá-lo e a olhar para onde o bobo olhava e a passar por onde ele passava, mas em mim falta um gracejo, um ar curioso que ao bobo já é dado: falta-me espírito.
E o bobo segue adiante
E eu vou atrás:
pés descalços, vez por outra fechando os olhos, espremendo os lábios e entendendo o prazer na dor, no sangue que se arrasta na estrada enquanto caminho calejado.
foi assim, espiando seus passos por dias e dias que ele me viu. fiquei envergonhado, tímido e pálido. ele se aproximou e colocou seus grandes olhos em mim, como se eu fosse raro objeto e precisasse ser visto inteiro. parecia curioso com o meu fascínio. ele abriu meus lábios e esfregou seus dedos sujos nos meus dentes: um a um. puxou minha língua pra fora e a soltou. lambeu o sangue dos meus pés, me cutucou, mordeu minha perna para ouvir meu grito e depois,
depois o bobo beijou meus lábios e me lançou um sorriso. ameaçou falar uma, duas, três vezes. por fim, depois de me olhar duvidoso, depois de olhar tudo ao redor, disse:
- é dessa merda que vocês são feitos?
deu-me um tapa na cara e dançou devagarinho para longe.

segunda-feira, maio 16, 2005

crisis

para lembrar na hora de sair da cama
o que você faz quando o sentido se esvai?
o que você faz quando se sente rejeitada?
o que você faz, o que você faz?
se você não sabe falar a coisa certa na hora certa,
se você não se entende por mais que tente,
se todos os seus movimentos parecem te partir ao meio?