sábado, dezembro 11, 2004

autobiografia III

perdi o último ônibus da madrugada. pensei em ligar para alguém e dormir em uma cama quente. não tenho coragem. são três da manhã e faz muito frio aqui fora.
puxei um cigarro e fumei deitado no banco.
"não pode deitar no banco" disse o guarda e eu levantei. Ele fez uma cara de não posso fazer nada, mas não me importava tanto assim dormir naquele momento.
O vento frio vinha do sul e acho que foi por causa dele e do frio que ele trazia, por causa da sua força e empenho em levar embora a nuvem negra que cobria a noite, que eu vi a lua - uma lua gigante que ocupava o céu.
o ônibus passou por mim cheio de olhares vagos, perdidos e não parou. agora me sinto bem por não tê-lo pego. essa sonolência, essa melancolia são sentimentos difíceis de se ter aqui nessa cidade enorme. esse ar solitário, esse cigarro entre meus dedos parece me fazer voltar ao passado. no passado, as pessoas se olhavam no olho. não havia pessoas sem nome. desconfio que não havia ônibus, nem madrugada, nem melancolia nesse meu passado. também não havia guardas e os bancos eram feitos mais para deitar do que para sentar. não havia, porém, liberdade essa de sentar no banco e fumar na madrugada, de perder o ônibus, de não ver as pessoas por dentro.
esse último pensamento me confortou e foi nesse momento ou um pouco antes que começou a chover densamente e eu derreti.
por um momento eu era aquela lua e descobri que não só ela ocupava o céu, mas os raios que emanavam dela iluminavam - meia-luz - o mundo todo e eu pude ver sorrisos, abraços, espaços vazios e uma multidão cega e surda. pude ver pessoas sem nome andando pelos espaços do mundo. pude descobrir seu maior medo que é o de serem descobertas por dentro. soube vê-las por dentro naquele instante - segundos, minutos talvez - e compreendi que eu era grande e que, na minha grande tristeza de ser eu, posso ter meu brilho noturno e enxergar esses todos que estão dentro dos corpos densos e dos olhares vagos andando pelo mundo todo.