sexta-feira, novembro 26, 2004

Autobiografia II

De fox para m.

acho que a pergunta que eu fiz para ele foi algo como "o que levou você a usar tênis amarelo?" mas a verdade é que isso foi apenas um detalhe em todo o semblante dele que eu percebi lentamente. pensava assim: os olhos cor de mel, cabelos cacheados até o pescoço com mechas vermelhas, um rosto lindo e um corpo desengonçado, diferente pela barriguinha de cerveja. uma camisa de manga comprida - um calor abafado de verão chegando - muitas coisas na mão: chaves, carteira, celular, cigarros. talvez estivesse surpreso com a pergunta, mas não demonstrou.
não é do meu feitio gostar de caras, assim como não é do meu feitio olhar para eles tão diretamente e perguntar sobre a procedência de suas excentricidades, mas alguma coisa nele - o sorriso engraçado ou o cabelo ou o jeito perdido com que anda ou ainda seus olhos sempre sonolentos - me fez sentir o coração palpitar.
percebi uma coisa: estava envergonhada. ele parecia sincero consigo mesmo e, no fundo eu tinha certeza de que ele era exatamente isso.
o que eu fiz? perguntava atônita para mim mesma e ele já respondia que estava na loja e sempre quis um tênis amarelo. faz tempo. fazem anos.
queria saber mais. porque ele queria esse tênis, mas ele não quis explicar. convidei-o para um café. italiano, perto do lugar onde estávamos, delicioso. ele não quis. se despediu e foi embora. fiquei com uma angústia de mulher rejeitada entalada no peito.
depois lembrei que ele era sincero, que deveria estar apressado. lembrei que não seria muito difícil encontrar um tênis amarelo nesse cu de cidade, assim como não deixaria de ver aqueles olhos apertados ou aquelas mechas no cabelo. ouviria a voz alta dele em qualquer lugar e sentiria de novo a mesma ternura e sinceridade nas suas falas.
acho que eu puxei o cigarro no momento em que ele apagou o dele e entrou no ônibus, onde ficaria entregue ao acaso. Não sem antes sorrir de novo o sorriso estranho que tinha dentro dele.